(des)Afetos

terça-feira, 16 de fevereiro de 2016

Voltas e reviravoltas de um palito

Ela entrou e olhou em volta encantada. Tudo era lindo, delicado e suntuoso. Desde o menor objeto aos grandes armários que forravam as altas paredes, ou os majestosos lustres cheios de pedrarias que pendiam do teto. 'Hummm! Dignos de um palácio!'

Deteve-se junto a umas prateleiras circulares, apreciando cada objeto. Bailarinas de louça rodopiando que lembravam antigos casarões. A música que vinha das caixinhas reportou-a à imagem de sua avó e à infância. Voltou a olhar em volta, andando devagar, como querendo absorver tudo. Passou a mão no veludo de uma chaise longue. Que requinte!

Ela verdadeiramente sentia-se em casa.  Estava decorando uma salinha íntima e aquele local era o ‘lugar’. Tudo ali era inspiração. Aquela mistura de épocas era bem sugestiva. Dirigiu-se ao balcão, sempre olhando em volta. Não havia ninguém atendendo. Uma porta entreaberta sinalizava que a qualquer momento alguém apareceria.

Aguardou uns bons 10 minutos. Viu então um sino em cima do balcão. Pegou-o e ergueu-o à altura dos olhos, apreciando os detalhes. Cristal com acabamento em prata, avaliou mentalmente! Passou os dedos nos detalhes. “Mas que coisa mais mimosa” disse, sem perceber que falara alto. E então sacudiu o sino, sorrindo ao toque musical, que não a decepcionara. Poderia ter um desses na minha mesa, disse. Desta vez para si mesma.

Voltou a circular o olhar, imaginando o que poderia adquirir para 'sua salinha'. Gostava de chamar de salinha íntima, apesar de funcionar como um escritório, mas a idéia era dar um toque de feminilidade e um certo requinte. Cercar-se de recordações e beleza, mas sobretudo de delicadeza. Apenas uns poucos objetos para realçar o que já tinha. "Um... toque!"
Suspirou e voltou-se de novo de frente para o balcão, olhou o relógio. Viera cedo, exatamente para encontrar as lojas vazias. Voltou a tocar o sino.

- Pois não, dona? – Dona? Repetiu para si mesma, sem saber se assustara com a voz ou o termo.  Definitivamente aquela sua manhã parecia... interessante? Acompanhou desconcertada o homem grande circular o balcão e parar bem na sua frente. Não conseguiu responder logo, tentando refazer-se da surpresa. Definitivamente aquele homenzarrão bigodudo com aspecto de taberneiro, seria a última figura que esperaria encontrar ali. Bom, pelo menos não ao natural, pensou divertida e quase refeita do espanto.  E seguiu divagando... Uma pintura em meio aos enormes quadros que forravam as paredes? - Éééé... Sacudiu a cabeça de um lado para o outro em conversinha consigo mesma. Deu um passinho para trás, tentando avaliar a figura grande e o jeito... desleixado? Era impressão sua ou ele estava suando? E a roupa? Não parecia limpa. Seria o proprietário? Não havia porque se surpreender, afinal via-se cada figura excêntrica por aí.
-        -  Bom dia. Desculpe, eu fui entrando, mas será que a loja está aberta? É um pouco cedo... - O homem pareceu olhá-la confuso. 
-     -  A porta está aberta...
“   - Ah, sim, claro. -  Sentiu-se um tanto indecisa, sem saber direito o que dizer. - Bom, eu preciso de umas peças mimosas. Estou decorando uma sala feminina e estou pensando em algo fino.
-         -  Mimosas? – Ela estremeceu. Era um palito aquilo na boca dele?
-     -  Sim, sim, nada muito exagerado. Vi ali umas estatuetas de bailarina, e umas caixinhas de música lindas...
-         -  Hum...  E porque não pegou?
-         -  Bom... não sei... Tem avisos para não tocar...
-       -  Mas se a dona vai levar... - De novo? Santa Madalena! Ela tentava não olhar o palito rolando de um lado para o outro na boca do homem, mas ele colocara-se bem na sua frente.
-     Talvez ele tivesse também um botequinho onde trabalhava à noite. Afinal as pessoas devem fazer o que gostam. Não era o que ela estava fazendo? Porque o homem não poderia? Talvez a esposa dele é que cuidasse da loja e naquele dia encontrava-se ausente, talvez... Pareceu mais aliviada com suas divagações, conseguindo até sorrir.
-       - Se é assim... Foi e voltou com algumas peças. – E lá estava o palito, mexendo-se e remexendo-se na boca do homem.
-        - Esta peça parece bem interessante, será que não teria outras similares, para formar um composê? – Tentava muito não olhar.
-       O homem tirou o palito da boca e ficou rolando com ele entre os dedos, olhando a peça. Alisou o farto bigode com os dedos, recolocou o palito na boca e pegou na peça. Ficou virando e revirando entre os dedos, como se acompanhasse os movimentos do palito na sua boca. Deve ser um cacoete.
-         -  Um compu... compu... 
-      -   Composê. – Disse. Agora com certa irritação, concentrada em não olhar o palito que parecia ter criado olhos, não parando de encará-la. Olhou as mãos grandes do homem meio sujas, avermelhadas, os dedos grossos, e pensou que não teria coragem de tocar de novo naquela peça, que a esta altura não lhe parecia mais tão mimosa, nem bonita, e muito menos requintada. A imagem daquelas mãos grosseiras do taberneiro e do insultuoso palito, ficariam para sempre marcadas na peça. 
-       O homem recolocou cuidadosamente o mimo no balcão.
-         -  Deve ser uns troco violento. “Mas que diabo?!...”
-       -  Sim, sim, seria bom saber o preço. – Queria era ir embora. Apertou a alsa da bolsa, que carregava no ombro direito, com as duas mãos, tentando não enjoar com o palito, mantendo certa distância do balcão. Voltou a estremecer quando ele retirou novamente o palito da boca, apontando-o na sua direção. Retrocedeu mais... 
      -  Olha dona, eu sou só o carregador.  Tou aqui no fresquinho dando uma parada pra descansar... A D. Júlia tá lá dentro com o patrão, conferindo as mercadoria.

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