(des)Afetos

quarta-feira, 10 de setembro de 2014

Seu Vicente e D. Benê

Aos 58 anos, seu Vicente é até bem parecido. Estatura média, magro, bem trajado, feições finas, bigodinho, cabelo liso pintado de castanho, sempre impecavelmente penteado. Os ombros levemente curvados, e lá circula ele. Simpático, cumprimenta todo o mundo no prédio. Cavalheiro, corre solícito para ajudar alguém a carregar as compras ou abrir a porta do elevador.  Atenções que suscitam risinhos faceiros e aprumos nas senhoras do condomínio. Seu Vicente adora sentar-se na sala da portaria pra ler o jornal. Dessa forma, foi formando um circulo de amigos interessados em escutar e contar as ‘últimas’ do condomínio. Claro que seu Vicente tem sempre seu momento pra discursar sobre seus conhecimentos. Bem falante, carismático, sua panca de homem sério e letrado, suscita admiração na vizinhança, sobretudo em meio às senhoras.

 Mas como todo o mundo, seu Vicente tem seus problemas. Secretamente, ele acha que o pior deles é sua esposa, D. Benê, com sua mania de grandeza e vaidades exageradas, vindas de uma fixação doentia de que descende da alta nobreza. Por causa disso, usara farta e inutilmente o dinheiro com detetives particulares para acharem as tais das nobres origens. Depois de muito desperdiçar as sobras da alta da laranja, surgira até um brasão, orgulhosamente pendurado na parede da sala de visitas. Outro grande problema, é que tais grandezas os afundaram mais depressa numa dureza embaraçosa. A grande fartura do passado restringira-se a minguada pensão no presente, que mal cobria as despesas. Viviam num apartamento enorme, necessitando de reforma. Quisera seu Vicente vender e trocar por algo bem menor, mas o diabo da mulher não queria nem ouvir falar. E seu Vicente além de passar a vida, a desculpar-se  com a vizinhança por tanta antipatia da esposa, ainda tem que amargar muitas necessidades e segredos.  Sim, segredos, pois não é que até seu trabalho precisa esconder pra não ofender os orgulhos de Madame Benê? Bem, claro que o tal trabalho não é lá muito católico, mas “pombas”, é um trabalho. 

Verdade seja dita que Benê tem seus méritos. Um deles é o faro para negócios. Não é que tão  recatada senhora tivera a idéia brilhante de vender artigos eróticos? Tornaram-se até conhecidos, ou melhor seu telefone, um outro número do qual ninguém tem conhecimento. Nada de dar nome aos bois. O cliente faz o pedido e em pouco tempo o produto é entregue. D. Benê tornou-se expert em produtos eróticos. Aprendeu o nome de tudo e sua utilidade. No início seu Vicente ficara boquiaberto, mas depois até que passara a achar graça em ver sua Benê, que tinha tanto cuidado com as palavras, pronunciar tais termos, faceta que ele desconhecia.

Mas seu Vicente tem suas fraquezas. A maior delas? Mulheres! Grandes, fortinhas e de preferência, peitudas. Quanto mais peitudas, mais o olhar dele cresce e brilha. Não é de bobeira que D. Benê trata com a maior antipatia a síndica, D. Linda, uma loiraça de quem ninguém sabe ao certo a idade. Quando as duas se encontram na portaria, parecem medir o tamanho uma da outra, ou melhor, dos peitos. É uma guerra fria, silenciosa, as armas são olhares e esgares venenosos. No dia em que uma ultrapassar a linha, a guerra estará declarada. Seu Vicente trata de desvanecer qualquer suspeita que D. Benê possa ter. Para isso tem seus truques e afinal, ninguém conhece tão bem a fera. Em casa enche-a de agrados. Fala à sua vaidade. Pespega-lhe uns beliscões carinhosos e matreiros e umas palmadas, com gosto de safadeza, no traseiro. D. Benê derrete-se em risinhos histéricos e durante uns dias é tudo amor e docinhos.

Mas nada de julgamentos quanto às carências e imperfeições de D. Benê. Com porte orgulhoso,  autoritária, modos e estilo antiquados, D. Benê é mulher de muitas vaidades. Às expensas de sua índole desagradável, tem lá seus encantos, já que de gostos no mundo tem de tudo um pouco. Cabelos platinados, enrolados em complicado coque preso com grampos, D. Benê é um monumento em imponência e tamanho. Com genuíno e farto colo, encaixado, a muito custo, em fenomenal sutiã tamanho 52, quando entra no elevador, três pessoas já ficam apertadas. Os homens receosos de nela tocar, espremem-se pelos cantos. Podem até pisar o pé um do outro mas tocar em D. Benê nem pensar. E ela que nem parece perceber os embaraços que causa, segue altiva, destilando e colhendo antipatias. Usa apenas saias, que em seu entender deixa a mulher mais elegante. Saias compridas, claro, como requer uma senhora. O que ninguém sabe é que D. Benê, sofre de calores infernais e sem que ninguém perceba, pelo menos assim ela pensa, vive agitando as saias, gesto que virou cacoete. Quando não tem ninguém por perto então, ela aproveita e os leves agitos viram sacudidas generosas.

E as jóias? Ah, as jóias... “Infelizmente“ só resta uma -, a aliança de sua mãe. Claro que qualquer ‘biju’ usada por D. Benê vira jóia. Até porque certas palavras ela sequer pronuncia. Detesta tudo o que é comum, popular, trivial. Agora mais desagradável que o porte empertigado de D. Benê é sua voz. Um timbre desagradável que alguns moradores bem humorados compararam ao pio de uma gralha. O comentário que virara piada, chegou aos ouvidos da criançada e alguns garotos mais assanhadinhos, quando vêem D. Benê, colocam as mãos em concha junto à boca, e cantarolam com voz esganiçada “bruá, bruá, bruaca...”. Ninguém sabe se D. Benê percebe que a brincadeira é com ela. Passa impassível, por vezes olha com desprezo e comenta com cara de nojo: ‘gentinha’.

Mas apesar de toda a fortaleza, D. Benê tem também suas fragilidades. Uma é o filho, Huguinho, que vive nos EUA, o chuchu e orgulho da mamãe. Ela adora alardear os dotes de Huguinho. Huguinho sabe e tem resposta para tudo “E porque se Huguinho aqui estivesse... “, “Porque Huguinho precisa saber...”. Certo é que D. Benê enxerga demais em todos os assuntos e nos outros, mas no que se refere a Huguinho, a sua cegueira é total. Outro ponto sensível é a falta de dinheiro.

Nos últimos tempos vem levando uma vida difícil, um dinheiro magro, obrigando à vida dupla. No íntimo D. Benê sabe que podia estar melhor de vida, não fossem os excessos com a educação de Huguinho, as vaidades exageradas de querer viver e ostentar o que não tem e o que não pode, como seu Vicente vive falando. Ainda assim, D. Benê pensa: ‘As idéias de girice que esse homem tem’. Imaginem vender seu apartamento?! Sim, ‘seu’, porque com D. Benê tudo era ‘meu’, não tinha cá essa de nosso. Afinal se dependesse de seu Vicente, não teria é nada. Tudo ele queria vender. Pois não tinha ele vendido até seus cristais, dos quais ela guarda religiosamente quatro taças, trancafiadas a sete chaves na gaveta da velha cristaleira? Depois se naquele condomínio, que não é para qualquer bolso, tinha que agüentar uma vizinhança grosseira e alcoviteira, o que não agüentaria vivendo em um “muquifo” de quarto e sala? Mas felizmente sua fé é grande e as coisas estavam se recompondo. As contas iam sendo pagas. Os ‘negócios’ estavam encaminhados. Começava a ser conhecida, ou melhor, seu telefone. Deus a livre de alguém descobrir. Mas, para D. Benê, o segredo está bem escondido. Imaginem se Huguinho a ouvisse pronunciar aquelas ‘palavras’? Sentia o rosto em brasa só de pensar.

No momento D. Benê está maquinando outra coisa. Tem os olhos voltados para o cargo de síndica. Sabe que a tal da D. Linda ‘e isso lá é nome?’ sempre vence as eleições porque nunca tem candidatos. Porque não ela? Tudo se resume a estratégia e inteligência. A tal da D. Linda e sua irmã retardada, a vice, não serão páreo para ela.

E lá seguem os dois a vida, seu Vicente e D. Benê.





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