(des)Afetos

domingo, 24 de novembro de 2013

Dona Antônia

“...como os animais irracionais que só sentem aquilo que diretamente atinge a sua pele”.

Poucos são os que compreendem (e menos ainda os que praticam) as alegorias e parábolas que Cristo usava para transmitir a sua doutrina moral”. (O Evangelho segundo o espiritismo, Allan Kardec)

Dona Antônia era dessas mulheres simplórias que via nas adversidades as penalidades de cada um. A lógica era simples: se até o filho de Deus tivera seu calvário, como poderiam meros pecadores passar pela vida sem sua via-crúcis?
A vida de pobreza, o casamento com um infeliz esquizofrênico, nada abalou sua alegria de viver, pois que a vida era o bem maior de Deus. Um dia, o infeliz marido insistiu em ficar postado, de pé, imóvel, no meio do mato, com os braços abertos em cruz. E ali permaneceu. Chuva, sol e vento não o acordaram de sua demência, tão pouco a família, amigos e curiosos que testemunhavam angustiados. Até que o pobre louco caiu e não acordou mais.

Dona Antônia aliviada, pensou intimamente que já era hora. Depois da dura pena, sabia-se merecedora dos Céus. Chorou e rezou o morto, como convinha a uma boa católica e seguiu, trabalhando e criando os filhos, sem lamúrias. O sustento minguado tirava-o da pequena lavoura, herdada dos velhos pais. Muito  trabalho duro ela tinha. Carpir, arar e plantar de sol a sol, no calor ou no frio. Dessa vida, sobraram-lhe as varizes, uma casinha no vilarejo e a pequena aposentadoria, que lhe trouxe o sossego merecido, mas também os quilos, que não paravam de aumentar, e as dores nas pernas que se mostravam frágeis para tanto peso.

Como tantos sitiantes, Dona Antônia não possuía os zelos de uma educação refinada, percebido na rudeza dos gestos e no linguajar chulo. Mas a naturalidade sobressaía-lhe como virtude. Com ela não havia mal entendidos, subterfúgios, artifícios, meias palavras nem vergonhas. O mesmo valia para as necessidades vitais do corpo. Era um tal de soltar ventos por cima e por baixo no maior à vontade. Aprendera que era saúde.

Quando pequena, seu pai dizia que insistir em prender os “ventos” que ansiavam por liberdade era lutar contra a natureza. Mas Dona Antônia tinha seus escrúpulos. Diante de visitas era comedida, ou pelo menos tentava. Bom garfo, comia com sofreguidão, mal respirando. Em meio a ruídos sôfregos de gula e prazer, enfardava guloseima atrás de guloseima. Nessas horas, o ar mais entrava do que saía. Mas depois não havia rolha que segurasse os ventos e os suspeitosos ruídos. E ai de quem estivesse por perto.

Receber visitas era um suplício constante. Quando precisava segurar-se por muito tempo, doía-lhe o peito, sentia calores, desesperava-se com o reboliço dos gases dentro dela. Até que, sem poder mais se conter, pulava do sofá com uma agilidade de causar espanto em físico tão avantajado e ia-se feito um foguete. Chegava ao quarto suando mas suspirando aliviada enquanto soltava os fluidos embaraçosos. Regressava calma, sorridente, sentindo-se leve, retomando a conversa exatamente no ponto em que parara. Se, por acaso, escapavam uns odores intrometidos, desculpava-se com seus dois cachorros que viviam pela casa.

Mas o que mais contribuía para a felicidade simples de Dona Antônia, era o tempo que lhe sobrava para glorificar o Senhor. Com as outras beatas, cuidava da igreja como de sua casa. Cristã ao extremo e temerosa dos castigos do céu, fazia-se presente todos os dias na igreja rezando por seus pecados. Voltava sentindo a paz e a segurança, que só os tementes a Deus conheciam. Se, por um acaso, uma ovelha desregrada sofria um infortúnio, comentava que tal não aconteceria se a igreja freqüentasse. Quando porém a desgraça atingia fervoroso sofredor do Senhor, lamentava em coro com outras beatas “Árduos são os caminhos do senhor.”

Confinada em um mundo pequeno, a vida prosaica de Dona Antônia tinha fronteiras bem definidas: sua família, a igreja, os mexericos da comunidade e as novelas na TV. Sua alegria era completa quando recebia as três filhas que terminaram se mudando para a cidade grande, atrás de oportunidades e emoções. Era difícil ali estarem todos juntos. A visita mais fiel era de sua caçulinha, Tetê.  Nos últimos tempos, acompanhava-a o namorado, Netinho. Um homem sério, que desagradara Dona Antônia, desde o começo, por se recusar a acompanhá-las à missa. A própria filha o desculpava, dizendo que Netinho se sentiria deslocado. Dona Antônia resmungava, olhando de soslaio o talzinho, que vivia com a “fuça” no jornal.

Os anos foram passando e Dona Antônia foi-se incomodando com aquele namoro que “não atava nem desatava”. Cobrava do futuro genro, dizendo que a filha começava a ficar “falada”. Sentia nas perguntas dos curiosos a censura velada, os olhares de compaixão e os tapinhas consoladores na mão “Logo ela casa”. Por seu lado, Tetê, a menina pura de mamãe Antônia, decidiu que era hora de dar a última cartada, pois de tonta e casta não tinha nada. Antes de mais, era necessário avivar o fogo do namorado “bundão".

Netinho usufruía dos repentinos e ardentes anseios carnais da namorada, mas fazia-se de surdo às palavras de mamãe Antônia. Como a pressão se tornasse insistente, a ponto de Dona Antônia enfiar a cara no seu jornal, para ter certeza de que era escutada, começou a desculpar-se com afazeres inexistentes para fugir aos finais de semana na casa da sogra.

Tetê começou a ficar exasperada e travou conversa franca com a mamãe. Dona Antônia, mãe amorosa, acima de tudo, entendeu os anseios da sua menina em querer uma vida fácil “a vida que a Deus pedira”, que, dizia, teria, com toda a certeza, se com Netinho casasse. Mas estava difícil, ainda mais agora que ele começara a sentir-se acossado com tanta cobrança. Do jeito que a coisa ia, disse Tetê debulhada em lágrimas, até o namoro perigava, assim como todos seus sonhos de fartura.

Dona Antônia, protegida e aos seus, como acreditava, pelos guardiões do Senhor, nada via de errado no que se referia a seus atos e muito menos, de suas crias. Tratou de arrastar o corpanzil e as pernas intumescidas, em busca de milagreira famosa. Tetê deveria ministrar as ervas ao namorado em datas determinadas. A beberagem era completada com simpatias, rezas e velas a Santo Antônio.

Quatro meses se passaram e Dona Antônia, refestelada no velho sofá da sala, deleitava-se com os docinhos e as fotos do casamento de Tetê que chorara baba e ranho pra conseguir que o noivo abrisse os bolsos pra festança do casório. Dona Antônia ficara tão indignada com a frieza e a sovinice do genro, que nem controlava a ventania fedorenta, culpa do feijão tropeiro ingerido no almoço. Não deu outra, botou as mãos na cintura e soltou o verbo. Foram muitos e todos bons, com a graça do Senhor Deus, que nunca a abandonava. Naquele momento Dona Antônia com toda a autoridade outorgada por sua grande devoção, sentiu que o Senhor lhe ordenava que iluminasse aquela alma pecadora e avara.

Mas então quem ele pensava que era para tratar sua menina daquele jeito? Tanta teimosia por causa de uns trocados para data tão importante na vida de uma moça? Um homem que tanto tinha? O que seria de Tetê e do nenê que vinha a caminho, com um pai que não aprendera a dividir o pão?... Como é que é? Exagero de sogra? Ela estava confundindo as coisas? “Pois fique o senhor sabendo, meu genro,... que ela entendia sim e muito bem o tamanho da safadeza. Agora que embuchara a sua menina, ela percebia as forças do mal querendo invadir sua casa, mas com ela e Tetê, uma menina doce e ingênua criada sob as graças do Senhor, ele não iria fazer farinha.

O coitado foi tomado de tal nervosismo diante daquele palavreado desconexo, acompanhado de uma torrente de perdigotos e mau cheiro, ao som das fungadas escandalosas da noiva, que a partir daquele momento adquiriu um tique nervoso contínuo que deformaria para sempre seu rosto. Dona Antonia não tinha dúvidas ser aquele, um castigo de Deus. Mas Tetê sofreria também com aquela deformidade. Quando se entregava aos desejos do marido, mesmo fechando os olhos, percebia o movimento irritante no rosto em cima do seu, e aqueles momentos viravam tormentos de muitas horas.



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