“...como os
animais irracionais que só sentem aquilo que diretamente atinge a sua pele”.
“Poucos são os que compreendem (e menos ainda os
que praticam) as alegorias e parábolas que Cristo usava para transmitir a sua
doutrina moral”. (O
Evangelho segundo o espiritismo, Allan Kardec)
Dona Antônia era dessas mulheres simplórias
que via nas adversidades as penalidades de cada um. A lógica era simples: se
até o filho de Deus tivera seu calvário, como poderiam meros pecadores passar
pela vida sem sua via-crúcis?
A vida de pobreza, o casamento
com um infeliz esquizofrênico, nada abalou sua alegria de viver, pois que a
vida era o bem maior de Deus. Um dia, o infeliz marido insistiu em ficar
postado, de pé, imóvel, no meio do mato, com os braços abertos em cruz. E ali
permaneceu. Chuva, sol e vento não o acordaram de sua demência, tão pouco a
família, amigos e curiosos que testemunhavam angustiados. Até que o pobre louco
caiu e não acordou mais.
Dona Antônia aliviada,
pensou intimamente que já era hora. Depois da dura pena, sabia-se merecedora
dos Céus. Chorou e rezou o morto, como convinha a uma boa católica e seguiu,
trabalhando e criando os filhos, sem lamúrias. O sustento minguado tirava-o da
pequena lavoura, herdada dos velhos pais. Muito
trabalho duro ela tinha. Carpir, arar e plantar de sol a sol, no calor
ou no frio. Dessa vida, sobraram-lhe as varizes, uma casinha no vilarejo e a
pequena aposentadoria, que lhe trouxe o sossego merecido, mas também os quilos,
que não paravam de aumentar, e as dores nas pernas que se mostravam frágeis
para tanto peso.
Como tantos sitiantes, Dona Antônia não possuía os zelos de uma educação refinada,
percebido na rudeza dos gestos e no linguajar chulo. Mas a naturalidade
sobressaía-lhe como virtude. Com ela não havia mal entendidos, subterfúgios,
artifícios, meias palavras nem vergonhas. O mesmo valia para as necessidades
vitais do corpo. Era um tal de soltar ventos por cima e por baixo no maior à
vontade. Aprendera que era saúde.
Quando pequena, seu pai
dizia que insistir em prender os “ventos”
que ansiavam por liberdade era lutar contra a natureza. Mas Dona Antônia tinha
seus escrúpulos. Diante de visitas era comedida, ou pelo menos tentava. Bom
garfo, comia com sofreguidão, mal respirando. Em meio a ruídos sôfregos de gula
e prazer, enfardava guloseima atrás de guloseima. Nessas horas, o ar mais
entrava do que saía. Mas depois não havia rolha que segurasse os ventos e os suspeitosos ruídos. E ai de quem estivesse por perto.
Receber visitas era um suplício
constante. Quando precisava segurar-se por muito tempo, doía-lhe o peito,
sentia calores, desesperava-se com o reboliço dos gases dentro dela. Até que,
sem poder mais se conter, pulava do sofá com uma agilidade de causar espanto em
físico tão avantajado e ia-se feito um foguete. Chegava ao quarto suando mas
suspirando aliviada enquanto soltava os fluidos embaraçosos. Regressava calma,
sorridente, sentindo-se leve, retomando a conversa exatamente no ponto em que
parara. Se, por acaso, escapavam uns odores intrometidos, desculpava-se com
seus dois cachorros que viviam pela casa.
Mas o que mais contribuía
para a felicidade simples de Dona Antônia, era o tempo que lhe sobrava para
glorificar o Senhor. Com as outras beatas, cuidava da igreja como de sua casa.
Cristã ao extremo e temerosa dos castigos do céu, fazia-se presente todos os dias na igreja
rezando por seus pecados. Voltava sentindo a paz e a segurança, que só os
tementes a Deus conheciam. Se, por um acaso, uma ovelha desregrada sofria um
infortúnio, comentava que tal não aconteceria se a igreja freqüentasse. Quando porém a desgraça atingia fervoroso sofredor do
Senhor, lamentava em coro com outras beatas “Árduos são os caminhos do senhor.”
Confinada em um mundo
pequeno, a vida prosaica de Dona Antônia tinha fronteiras bem definidas: sua
família, a igreja, os mexericos da comunidade e as novelas na TV. Sua alegria
era completa quando recebia as três filhas que terminaram se mudando para a
cidade grande, atrás de oportunidades e emoções. Era difícil ali estarem todos
juntos. A visita mais fiel era de sua caçulinha, Tetê. Nos últimos tempos, acompanhava-a o namorado,
Netinho. Um homem sério, que desagradara Dona Antônia, desde o começo, por se
recusar a acompanhá-las à missa. A própria filha o desculpava, dizendo que
Netinho se sentiria deslocado. Dona Antônia resmungava, olhando de soslaio o
talzinho, que vivia com a “fuça” no
jornal.
Os anos foram passando e
Dona Antônia foi-se incomodando com aquele namoro que “não atava nem desatava”. Cobrava do futuro genro, dizendo que a
filha começava a ficar “falada”.
Sentia nas perguntas dos curiosos a censura velada, os olhares de compaixão e
os tapinhas consoladores na mão “Logo ela
casa”. Por seu lado, Tetê, a menina pura de mamãe Antônia, decidiu que era
hora de dar a última cartada, pois de tonta e casta não tinha nada. Antes
de mais, era necessário avivar o fogo do namorado “bundão".
Netinho usufruía dos
repentinos e ardentes anseios carnais da namorada, mas fazia-se de surdo às
palavras de mamãe Antônia. Como a pressão se tornasse insistente, a ponto de
Dona Antônia enfiar a cara no seu jornal, para ter certeza de que era escutada,
começou a desculpar-se com afazeres inexistentes para fugir aos finais de
semana na casa da sogra.
Tetê começou a ficar
exasperada e travou conversa franca com a mamãe. Dona Antônia, mãe amorosa,
acima de tudo, entendeu os anseios da sua menina em querer uma vida fácil “a vida que a Deus pedira”, que, dizia,
teria, com toda a certeza, se com Netinho casasse. Mas estava difícil, ainda
mais agora que ele começara a sentir-se acossado com tanta cobrança. Do jeito
que a coisa ia, disse Tetê debulhada em lágrimas, até o namoro perigava, assim
como todos seus sonhos de fartura.
Dona Antônia, protegida e
aos seus, como acreditava, pelos guardiões do Senhor, nada via de errado no que
se referia a seus atos e muito menos, de suas crias. Tratou de arrastar o
corpanzil e as pernas intumescidas, em busca de milagreira famosa. Tetê deveria
ministrar as ervas ao namorado em datas determinadas. A beberagem era
completada com simpatias, rezas e velas a Santo Antônio.
Quatro meses se passaram e
Dona Antônia, refestelada no velho sofá da sala, deleitava-se com os docinhos e
as fotos do casamento de Tetê que chorara baba e ranho pra conseguir que o
noivo abrisse os bolsos pra festança do casório. Dona Antônia ficara tão
indignada com a frieza e a sovinice do genro, que nem controlava a
ventania fedorenta, culpa do feijão tropeiro ingerido no almoço. Não deu outra,
botou as mãos na cintura e soltou o verbo. Foram muitos e todos bons, com a
graça do Senhor Deus, que nunca a abandonava. Naquele momento Dona Antônia com
toda a autoridade outorgada por sua grande devoção, sentiu que o Senhor lhe
ordenava que iluminasse aquela alma pecadora e avara.
Mas então quem ele pensava
que era para tratar sua menina daquele jeito? Tanta teimosia por causa de uns
trocados para data tão importante na vida de uma moça? Um homem que tanto
tinha? O que seria de Tetê e do nenê que vinha a caminho, com um pai que não
aprendera a dividir o pão?... Como é que é? Exagero de sogra? Ela estava
confundindo as coisas? “Pois fique o senhor sabendo, meu genro,...” que ela
entendia sim e muito bem o tamanho da safadeza. Agora que embuchara a sua
menina, ela percebia as forças do mal querendo invadir sua casa, mas com ela e
Tetê, uma menina doce e ingênua criada sob as graças do Senhor, ele não iria
fazer farinha.
O coitado foi tomado de tal
nervosismo diante daquele palavreado desconexo, acompanhado de uma torrente de
perdigotos e mau cheiro, ao som das fungadas escandalosas da noiva, que a partir daquele momento
adquiriu um tique nervoso contínuo que deformaria para sempre seu rosto. Dona
Antonia não tinha dúvidas ser aquele, um castigo de Deus. Mas Tetê sofreria
também com aquela deformidade. Quando se entregava aos desejos do marido, mesmo
fechando os olhos, percebia o movimento irritante no rosto em cima do seu, e
aqueles momentos viravam tormentos de muitas horas.
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